L. Szondi


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PAROXISMO, REVOLTA E SURPRESA

JEAN MELON

Porque não há para o homem que permanece livre , cuidado mais constante, mais tocante que o de procurar um ser diante do qual se inclinar... Não há, repito-lhe, cuidado mais pungente para o homem, como o de encontrar o mais cedo, um ser a quem delegue este dom da liberdade que o infeliz traz quando nasce ... Não há nada mais sedutor para o homem que o livre arbítrio, mas também, nada de mais doloroso... Aumentaste a liberdade humana em vez de confiscá-la e também impuseste para sempre ao ser moral os terrores desta liberdade. Querias ser livremente amado, voluntariamente escolhido pelos homens encantados. No lugar da dura lei antiga, o homem devia, doravante , com o coração livre, discernir o bem e o mal, não tendo senão a tua imagem para guiar-se, mas não previas que ele rejeitaria enfim e contestaria mesmo a tua imagem e a tua verdade, ficando acabrunhado por este fardo terrível : a liberdade de escolher... tu assim preparaste a ruina do teu reino : não acuse pois, ninguém, desta ruina... Existem três forças, as únicas que podem subjugar para sempre a consciência destes fracos revoltados, são:

o milagre, o mistério, a autoridade! Tu, as rejeitaste, todas as três, dando assim, um exemplo.

( E o Grande Inquisidor, patrono de todos os déspotas esclarecidos e de todos os totalitarismos

“ com feição humana ”, para explicar ao Cristo que ele fez melhor, que ele amou verdadeiramente aos homens porque os libertou dete fardo insuportável : a liberdade, que no lugar e em substituição desta, propôs alguma coisa que hoje se denominaria ideologia e foi por isso, que o homem foi liberado da liberdade) ...

Compreenderão o valor da submissão definitiva. E enquanto os homens não a compreenderem, serão infelizes... Tornar-se-ão tímidos, não nos perderão de vista e se encolherão contra nós, com pavor como uma tenra ninhada sob a asa materna ...

Dostoievski. O Grande Inquisidor , in “ Os Irmãos Kramazov ”, Trad. Henri Mongault,

Gallimard, La Pléiade, 1952,p.267-287.

A epilepsia e a histeria apresentam a particularidade de manifestarem-se através de crises, as quais sobrevêem de um fundo de uma organização psíquica singular, que pela seqüência de

Szondi, qualificamos de paroxismal.

São também afetos derrotadores e surpreendentes, não apenas pelo caráter imprevisível da sua evolução, mas pelo extraordinário polimorfismo das suas manifestações clínicas, tanto que desde que os médicos se preocupam com ela, até hoje ainda, sua definição e a classificação das suas diferentes formas constituem um verdadeiro quebra-cabeças.

Aliás, muitos se desencorajam.

“A definição da histeria, dizia Lasegue em1878, nunca foi dada e não será jamais. Os sintomas não são, nem muito constantes, nem muito conformes, nem sufucientemente iguais em intensidade e em duração para que um mesmo tpo descritivo possa abranger todos”.

Dez anos mais tarde, Freud expressa uma opinião oposta.

Muito das contribuições do seu amigo Breuer que lhe havia revelado a história extraordinária de Anna O. por uma parte, e pela sua freqüência da clínica de Charcot (1885), além disso escreve, em 1888, no início do capítulo de “Histeria” do Dicionário de Medicina Geral” de Villaret :

Os autores alemães tanto quanto os ingleses têm ainda hoje o hábito de fornecer descrições caprichosas da histeria, confundindo a histeria com o nervosismo geral, a neurastenia e muitos estados psicóticos ou neuróticos que não conseguem retirar do caos das doenças nervosas.

Charcot, pelo contrário, sustenta firmemente que a histeria corresponde a um quadro clínico rigorosamente circunscrito e definível que se reconhece melhor nos casos extremos conhecidos sob o nome de “grande histeria” ou histero-epilepsia.

A histeria recobre toda uma série de estados intermediários entre a “grande histeria” e a normalidade.

Em todo caso a histeria é fundamentalmente diferente da neurastenia e, por falar, constitui mesmo, estritamente o seu contrário”. (1).

Notamos para a pequena história que a noção de histero-epilepsia, forjada por Piso ( Sintoma da histeria que diz o vulgo ao referir-se à epilepsia ou Symptomata hysterica quidem vulgo dicta ad

epilepsiam referentur,1618 ), consagrada pela escola de Charcot e celebrada pela obra de Richer em 1880, será rejeitada pelo mestre na sua aula de 19 de março de 1889, sem que a etiologia neurológica da histeria seja para tanto posta em discussão. O que Charcot abandona em 1889, é apenas a idéia de um substrato orgânico comum à epilepsia e à histeria.

O imenso trabalho de decifração a que Freud submeteu a histeria, desvendou completamente seu mistério com exceção do “misterioso salto do psíquico ao somático” que caracteriza o fenômeno de conversão desta “complacência somática” que induz a histeria a fazer falar seu corpo cada vez que ele não pode, não quer ou não deve dizer alguma coisa que é da ordem do desejo.

É ainda necessário lembrar o essencial?

O histérico exprime simbolicamente os conflitos psíquicos inconscientes através dos variados sintomas corporais, alguns paroxísticos como os ataques, outros mais duráveis, muitas vezes crônicos.

O sintoma somático encarna o fantasma do desejo inconsciente, segundo um compromisso que permite manter o conflito à parte da consciência, autorizando completamente uma satisfação substitutiva e dissimulada do desejo. A conversão realiza o benefício primário de resolver senão o conflito, pelo menos de reduzir a tensão ansiosa que dele emana.

O domínio da histeria é o dos desejos inconscientes, das suas proibições e das suas transgressões. A linguagem da histeria, é a linguagem do corpo, que se analisa da mesma maneira que o sonho.

Mas quem diz linguagem implica em interlocução e aqui aparece a outra função do sintoma histérico que é a de estruturar a relação com o próximo.

“O sintoma histérico é de fato uma mensagem, inabitual na sua forma , mas eloqüente no seu conteúdo, singularmente eficaz enquanto apelo ao Outro, de quem abala a indiferença e suscita inevitavelmente uma resposta.” ( 2 ).

O histérico “coloca-se em todos os seus estados e aí coloca os outros”, como disse Schotte no seu curso de 1986.

Enfim o conflito entre as pulsões do ego e as pulsões sexuais se duplica num conflito no interior mesmo da sexualidade. A corrente masculina na mulher, a corrente feminina no homem são tanto mais fortes quanto são energicamente rejeitadas, dando conta dos distúrbios constantes da sexualidde.

Não há compreensão possível da histeria fora da consideração do conflito intra/intersubjetivo, nem solução terapêutica aquém da restauração de um verdadeiro diálogo intersubjetivo que autorize a expressão verbal do desejo proibido, o que não é nada possível, no final das contas, senão pela elucidação e a resolução da neurose de transferência.

Queira ou não, a cura psicanalítica torna-se o único caminho que permite sair-se dela.

Tudo isto é conhecido há um século.

Mas a rejeição coletiva é tão grande, sobretudo na psiquiatria acadêmica, que o DSM III , o último na data das grandes classificações nosográficas, tende pura e simplesmente a esvaziar o conceito de histeria para substituí-lo por noções exclusivamente descritivas de “distúrbios somatoformes, dissociativos, psico-sexuais e de personalidade histriônica.” (3).

Quanto à epilepsia, o ostracismo a que é relegada, é ainda muito mais radical.

Até 1930, data em que Hans Berger aperfeiçoa a técnica da eletroencefalografia, todos os grandes tratados da psiquiatria reservam-lhe uma posição de destaque.

Em seguida, não é mais mencionada, senão esporadicamente , até seu desaparecimento completo no DSM III.

A histero-epilepsia foi volatilizada ao ponto de que o psiquiatra moderno não ousaria invocá-la sem correr o risco do ridículo de retardar um meio século.

A clivagem parecia completamente consagrada entre a epilepsia, enfermidade cerebral orgânica, reservada aos neurologistas e a histeria, enfermidade psíquica voltada ao seu antigo descrédito e abandonada a quem quer que se digne ocupar-se dela, desde os comerciantes de chás até os psicanalistas.

Não há classificação das epilepsias que não seja construída sobre uma base estritamente eletroclínica até mesmo puramente eletroencefalográfica.

Bancaud (4) , no seu artigo de 1976, reconhecia de bom grado, que há uns trinta anos, o estudo clínico da epilepsia regrediu consideravelmente, a ponto de que, doravante, o interesse pelas manifestações clínicas da epilepsia, passa por relevar-se de um diletantismo anacrônico.

O último grande trabalho produzido neste domínio é, sem dúvida, o Estudo No. 26 de Henry

Ey (5) .

Sem desviar-se do ponto de vista organodinâmico que se lhe reconhece e completamente agora, firmemente, a tese de uma etiologia exclusivamente orgânica da epilepsia, Henry Ey, ainda que critique severamente a noção da personalidade epilética e do epileptóide, levados à honra por Françoise Minkowska, alcançou, não obstante, nas suas conclusões, fórmulas como esta:

“O homem epilético, comparado à garrafa de Leyde por tantos autores, é aquele homem de quem, Sant (1875), disse: “ tem sempre o paroquiano no seu bolso, o nome de Deus nos lábios e a canalhice no corpo” (p.627) ...

... o homem epilético tem necessidade da sua crise e se se lhe suprime esta, é necessário saber fornecer-lhe compensações (p.630)...

este furor, esta necessidade fora de si de destruir, constitui o eixo existencial do epilético...

...a tendência à exaltação religiosa, ao sacrifício, ao ideal, está como que soldada ao radical homicida do epilético (p.631)...

... ele sobe e desce como se a lei da sua existência fosse a de uma explosão em dois tempos, uma para o alto, outra para baixo, esta, de um ritmo vertical entre a condição humana da ocasião em pé e a do tombo. De tal sorte que o homem epilético ... é freneticamente propulsionado, seja para além de um mundo sobrenatural e imortal, seja no aquém da vida, nas angústias da morte (p.632)...

...assim, ele se encontra remetido de baixo par o alto e do alto para baixo, segundo a expressão mesma de Dostoievski. E este corpo a corpo convulsivo se desenvolve como um abraço sádico do objeto libidinal inconscientemente investido das primordiais pulsões complexuais: o homicídio, o incesto e a auto-punição são as forças que conferem às descargas nervosas e musculares do seu corpo, sua suprema, sua primeira e última significação.

Comentando longamente o caso de Jean Pierre L., epilético de longa data, que na idade de 60 anos mata selvagemente sua velha mãe, ao curso de um estado crepuscular oniróide, Henry Ey consigna os propósitos do sujeito, no momento em que emerge lentamente do estado crepuscular:

“Eu não tinha subido aí encima... Ela estava grávida... não era de mim...sim, ela sucumbiu ali...

eu me pus assim ( coloca-se em posição ginecológica)...então, caiu... ali na frente...sim, uma bolota.”

Henry Ey reconhece a parte da psicogênese que motivou o matricídio na memória rejeitada de uma “cena primitiva”: com a idade de 12 anos, Jean Pierre L. masturbava-se ouvindo os gritos volutuosos da sua mãe nos braços de amante. Após o crime, estava igualmente masturbado.

O que significava o ato criminoso?

No estado oniróide, Jean Pierre L. identificou-se projetivamente à sua mãe infiel. Matando-a, matou a si mesmo, mas antes, tornou-se mulher, a ponto de alucinar a castração : “ Então, caiu ali na frente, sim, uma glande!”

Henry Ey resume laconicamente: “frustração, ciumes incestuoso a respeito da mãe fálica, identificação passiva com a imagem materna, agressividade ambivalente, castração punitiva.” (p. 593).

Para Ey, a psicogênese é acessória. Ela não pôde produzir seus efeitos, senão a favor de um enfraquecimento demencial. O primata retorna à organo-gênese.

A explicação dinâmica é, todavia, super-posta à interpretação que Freud apresenta a propósito de Dostoievski (6).

Contrariamente a uma opinião bastante divulgada, Freud não atribui nenhum sentido particular à crise do grande mal, enquanto interpreta os ataques “histéricos” de Dostoievski como a encenação de um coito em que o sujeito realiza seu fantasma bissexual (7).

Freud, abandonando a tese da histero-epilepsia como o havia feito Charcot, considera a epilepsia antes de tudo como uma enfermidade neurológica, reconhecendo completamente a existência de uma “epilepsia afetiva - l’ Affekt-Epilepsie de Bratz - que lhe aparece como uma pseudo-epilepsia.

Duvida que Dostoievski tenha sido um verdadeiro epilético, pelo fato de que tenha ele sempre ruidosamente alardeado sua epilepsia, tornando-a tanto mais suspeita de inautenticidade.

Dostoievski seria antes um histérico que se serviria da sua aptidão de convulsionar mais ou menos sob comando, para “oferecer-se crises”, se é permitido que se exprima assim, afim de realizar sobre o modo conversivo, seu triplo desejo de matar o pai, de punir-se pelo seu crime por um suicídio simbólico e last but not least de satisfazer seu masoquismo moral tanto quanto feminino, através de um coito imaginário com o pai.

Dizendo por outras palavras, o ódio virulento e consciente, desenvolvido no lugar do pai, não

servia senão para mascarar a tendência homossexual rejeitada.

Na mesma ordem da idéia, seu amor exaltado pela humanidade aparecia como uma tentativa de sublimar esta homossexualidade, enquanto que sua devoção tardia pelo Tsar é a réplica do seu anarquismo juvenil.

Em termos szondianos, Dostoievski seria passado da revolta aberta ( P - + ) contra a tirania, à posição de um turiferário entusiasta (P + +), sem nunca ocupar a posição reservada de um sujeito moderado, moral e pudico ( hy -), o que, do nosso ponto de vista, daria conta da antipatia que suscitava em Freud.

Em todo caso, uma coisa é certa; contrariamente aos outros

(Stekel, Reich, Ferenczi...) Freud nunca defendeu a idéia de uma psico-gênese da epilepsia.

Certamente, também não é o cuidado de Szondi que sempre se colocou como um naturalista convicto.

Mas não é para tanto que a epilepsia - e a numerosa série dos “equivalentes” - pareça-lhe como desprovida de sentido prioritário.

Este sentido não foi determinado pelo demasiado tarde, como em Freud, ele é pre-significado em razão das origens filogenéticas da tendência epilética.

Emprestando estas noções a Kretschmer, Szondi vê em todas as manifestações epiléticas no grande mal, como no pequeno-mal-ausente e nos equivalentes psicomotores, reações de defesa arcaicas contra um perigo mortal, a reação primitiva consistindo em “fazer a morte” (Totstellreflex).

Na histeria, é o mimetismo ( Farbwechsel, Mimikry ) que prevalece. A “ tempestade de movimento” (Bewegungssturm) é comum aos dois (8).

A diferença entre o animal e o homem reside nisto, para este último, a defesa é antes dirigida contra um perigo interior que contra uma ameaça saída do mundo exterior.

Se Szondi pode invocar unicamente as noções de pulsão paroxismal, de pulsão de surpresa ( Uberrasschungstrieb ) e de pulsão dos afetos, é porque o epilético e o histérico estão respectivamente em contradição aos mais poderosos afetos que trabalham no interior do ser humano, enquanto participante da descendência de Édipo: o afeto assassino e o afeto incestuoso.

Pelo fato da recusa, estes afetos tendem a acumular-se até o paroxismo que os faz descarregarem-se pela surpresa sobre o modo de crise, cuja finalidade não é menos afetar ao próximo como que afetar a si mesmo.

Afeto, nota Szondi, deriva do latim afficere que significa (10) : pôr em tal ou tal disposição, tratar ( bem ou mal ), indispor, tornar doente, impressionar, afetar, emocionar, pôr de tal ou de tal humor, gratificar, poder, encher de, causar uma mudança, modificar, tocar, cumular de . Afficere exilio : punir com o exílio. Afficere muneribus : encher de presentes.

E’notável que o mesmo verbo possa ser usado nos dois sentidos opostos da punição e da recompensa.

Alphonse de Waelhens (11) insistiu vigorosamente sobre o fato de que o campo da pulsão paroxismal tirava sua especificidade por confrontar o sujeito - da sua dimensão radical de “sub--jectus” - à Lei, enquanto que os outros vetores remetem eletivamente à sua relação com o próximo (C), ao corpo objetivado (S) e à relação consigo mesmo (Sch).

“A idéia de que a relação com a Lei contribui para a constituição da subjetividade efetiva do que é humano nos é familiar há muito tempo. Aprendemos com Freud que esta relação define o núcleo do papel e da função paternas, como também o essencial da nossa relação com o pai.É permitido dizer nesta perspectiva que pelo menos, em certa relação, é pela Lei que o Édipo se desenvolve e se resolve. A mais, aprendemos, com Lacan, que aquilo que ele denomina de “metáfora do -Nome-do-Pai”, pelo tanto que ela consagre a inanidade de colocar-se como aquilo que preenche a falta do outro, pelo tanto que ela localize de qualquer maneira o Outro no outro, digo eu que aprendemos que esta metáfora é, pelo seu logro ou pelo seu sucesso, a chave do mecanismo psicótico ou a da ascensão à normalidade de um sujeito verdadeiro... há um elo estreito entre a Lei segundo Szondi e aquilo sobre o que nos falam Freud e Lacan. Porque, se para estes últimos, a Lei confunde-se com o reconhecimento do Pai, enquanto que confere a identidade pela promulgação do proibido, então o crime do pai é, também, o crime primário e a suprema negação da Lei. Porque, para que matar se isto não é para eliminar o obstaculo do que limita? E onde o limite se coloca mais absolutamente, senão ali onde ele se torna o meio de enunciar a minha identidade mesma e de situar-me irrevogavelmente entre todos os humanos? É pois, bem o pai que é preciso matar para assumir a impossível contradição, visando tornar-se um ser que não dependeria senão de si ... (p. 305).

Todavia, é preciso destacar que esta figura do pai proibidor, tal como surge no fundo da cena primitiva para assumir toda a sua medida no fantasma da castração, este pai que detém todo o conjunto possessivo do falo e o poder de punir, não é apenas um objeto de ódio implacável, suscitando o medo e o desejo assassino, apresenta-se também como um objeto de admiração e de respeito, drenando para sua pessoa a necessidade de amor e de reconhecimento que o pequeno homem dantes esperava que fosse mais cedo satisfeito pela mãe.

A atitude do sujeito humano para com tudo o que encarna o poder e a autoridade é sempre marcada com ambigüidade profunda.

Não é apenas muito evidente, como lembra Michel Foucault, que

“... identifica-se o poder a uma lei que diz não; teria, sobretudo, a potencialidade do proibido. Ora, creio eu, que aqui está uma concepção totalmente negativa, estreita, esquelética do poder, que foi curiosamente, dividido. Se o poder não fosse senão repressivo, se nunca fizesse senão outra coisa que dizer não, crê verdadeiramente, você, que se chegaria a obedecer-lhe? O que faz com que o poder se mantenha, que se lhe aceite, é, mas muito simplesmente, que não pese apenas como uma potência que diz não, mas que, de fato, é que ele atravessa, produz coisas, induz prazer, forma saber, produz discurso; é preciso considerá-lo como uma rede produtiva que passa através de qualquer corpo social, mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir”(12).

Não é por acaso, e é em todo caso esclarecedor, se Szondi, antes de invocar o mito de Édipo, escolheu por encarnar o histero-epilético na figura de Caim.

Caim como o destaca, Antoine Vergote (13), não se situa completamente ao lado de Tânatos.

“Caim representa o domínio da terra, a tendência homicida, a erupção dos afetos violentos, ainda não éticos: maldade maligna, possessão como apropriação, desejo de mutilação e de crime. Aqui estão as manifestações das pulsões agressivas, isto é, da pulsão de morte.

Mas o complexo de Caim é determinado também pela libido. Caim quer possuir, dominar a terra e regozija-se com a infelicidade do próximo. Caim é furiosamente dirigido contra seu irmão, sente ciumes dele. No seu desejo de posse, mata seu irmão, injuria ou vai até matar seu pai ou tanto quanto, Deus, o Pai. Mas aqui não está o Caim inteiro, inicialmente, não visa possuir ; o que ele quer, é o amor do pai só para ele. A pulsão da morte apenas, não dá conta do Caim, mas a coexistência conflitual entre Eros e Tânatos, numa relação intersubjetiva com o irmão e com o pai” (pp.448-449).

Szondi não designa, noutras palavras, a posição cainesca, unicamente pela reação assassina e- , mas pelo par e - hy + que dá conta do amálgama entre o ressentimento odioso e a reinvindicação ruidosa do amor lançado ao endereço do pai.

No campo do vetor P, como em toda patologia histero-epilética, é sempre o pai-déspota que é visado, tão bem por uma revolta implacável quanto por uma reivindicação de amor exclusivo e de reconhecimento incondicional.

Para dizer a verdade, Caim não entra em ódio senão porque se considera lesado, ele, que se acreditava legitimado a ser o mais amado e o único agregado, pois que se estimava como o mais merecedor. Não era ele, este rude trabalhador, pagando com seu suor e seu sangue um direito presumido a preencher o primeiro lugar no amor do pai ?

O trágico de Caim, é que ele se engana de lei.

Porque existe a Lei e lei.

A lei que rege a existência de Caim é de essência materna, é a lei dualista do pertencente recíproco; seja todo meu, serei todo teu, pois saíste de mim e de mim que recebeste tudo; pois tudo que sai de ti, teu trabalho, tuas obras, teus pensamentos, me sejam entregues. É a lei da troca anal e da relação sado-masoquista.

É o que viu muito bem Daniel Siboni (14) na sua análise da personagem Caim:

Caim trabalhou duramente e como é um homem cheio de recursos ( dizia dele sua mãe: é um homem ), teve êxito de produzir muito, até se pode mesmo pensar que ele se alegra e se impacienta ao levar de ‘presente’ uma pequena amostra, de que, com ela, põe plenamente à vista o Próximo, isto é, com o que cegá-lo e calar-lhe a boca ; de modo que na intenção radical do seu ato, encontra-se o germe da necessidade de que o Outro nada encontre para comentar e portanto nada a dizer a respeito desta oferenda” (p.23).

Mas o Outro não responde à expectativa de Caim.

Do mesmo modo que existe outro e Outro, existe a lei e Lei.

O destino de Caim poderia confundir-se com o de Sísifo. Se o Outro tivesse agregado a sua oferenda, teria podido “imaginar-se feliz” , como disse Camus, mas teria sido um logro.

O Outro não permitiu que ele persevere num destino de escravo anal.

Mas no final, o que queria o Outro?

Que Caim e todos os seus irmãos humanos que após ele viessem, fossem de uma vez por todas liberados do ela-por-ela para serem introduzidos na liberdade do ser enfim eles-mesmos, subtraídos ao poder morti-sonífero da mãe anal.

Que Caim seja livre como é o Outro, ele-mesmo, soberanamente livre!

Pelo fato da liberdade, para além do crime que o liberou pelo menos do constrangimento obsessivo de trabalhar sem descanso - doravante seu trabalho nào tem mais sentido, sobretudo, não este de uma reparação, pois que ele rejeita a culpa -, Caim apenas acedeu ao nível zero da liberdade: a erronia (m-).

Para a questão crucial do desejo do Outro, é Dostoievski, o histero-epilético, quem dá a resposta na lenda do “Grande Inquisidor”, este “grande velhaco, quase nonagenário, com uma fisionomia

encarquilhada, com olhos cavos, mas onde ainda brilha uma chama” e quem desejaria de algum modo que se tomasse por um pai: Deus quis que o homem fosse livre, apesar de que soubesse por antecipação que o homem não teria nunca a necessidade mais urgente de desembaraçar-se do fardo da liberdade e do desejo que é o seu corolário.

Comentando a lenda Karl Barth (15) escreve:

...”a liberdade carregada pelo Cristo e renegada e rejeitada em todos os tempos como despropositada e perigosa pelo Grande Inquisidor é a liberdade no cativeiro de Deus. Mas a liberdade nesta liberdade é a liberdade de Deus.... a liberdade que temos em Deus além da lei, a liberdade da qual não podemos escapar, porque ela é a verdade, porque ela é a liberdade de Deus mesmo...”(p.40).

Cada um é livre para substituir Deus pelo Outro ou pelo Pai Simbólico até mesmo a metáfora do Nome-do-Pai previsto que se tenha compreendido que a Lei que deslancha as tempestades paroxismais é também a terceira mediadora por onde o EU começo a descobrir os caminhos da sua liberdade.

Bibliografia:

1. FREUD S. “Hysteria”, (1888), The Standard Edition, vol.I,p. 41

Freud S. ‘Histeria”, (1888), The Standard Edition, vol. I ,p.41

2. LEMPERIERE,Thérèse. “Hysterie”, Encycl.Universalis,vol.8, 1968, p.687

Lemperiere, Thérèse. “Histeria”, Enciclopédia Universal, vol. 8,1968,p.687.

3.DSM III, Manuel diagostique et statistique des troubles mentaux, Masson, Paris, 1986.

DSM III, Manual de diagnóstico e estatísticas dos distúrbios mentais, Masson, Paris, 1986.

4.BANCAUD J. Epilepsies, Encycl.Med.Chir. Neurologie, Paris, 1976,17045,A 10.

Bancaud J. Epilepsias, Enciclopédia Méd.Cirúrgica Neurologia, Paris, 1976, 17045, A 10.

5.EY H. Etudes Psychiatriques, vol. 3, Etude No.26, Epilepsie, Desclée de Brouwer,Paris,1954, pp.519-652.

6. FREUD S. (1930). Dostoievski und die Vatertötung. Gesammelte Werke, vol. 14,397-418.

7.FREUD S.(1909). Considérations génerales sur l`attaque hystérique, in Névrose, Psychose et Perversion, Presses Universitaires de France, Paris, 1973, pp.161-165.

Freud S.(1909). Considerações gerais sobre o ataque histérico, in Neurose, Psicose e Perversão,

Imprensa Universitária da França, Paris, 1973, pp. 161-165.

8. SZONDI L. Lehrbuch der experimentellen Triebdiagnostik, Hans Huber, Bern,1961, p.102.

9.Szondi L. Introduction à l` Analyse du destin, tome 2, Nauwelaerts, Louvain, 1983, p.61.

Szondi L. Introdução à Análise do destino, tomo 2, Nauwelaerts, Louvânia, 1983, p.61.

10. GOELZER H., Dictionnaire latin-français. Garnier, Paris, 1928.

Goelzer H. , Dicionário latim-francês. Garnier, Paris, 1928.

11. DE WAELHENS A. Sujet et système dans la pensée de Szondi. Szondiana.

De Waelhens A. Sujeito e Sistema no Pensamento de Szondi. Szondiana.

12. FOUCAULT M. Vérité et pouvoir, L’Arc, No.70, Numéro Spécial “La crise dans la tête”. Aix-en-Provence, 1977, p.21.

13. VERGOTE A. Complexe d’Oedipe et complexe de Caïn. Revue de psychologie et des sciences de l’éducation, Louvain, 1971, vol. 6,4,446-55.

Vergote A. Complexo de Édipo e complexo de Caim. Revista de psicologia e de ciências da educação, Louvânia, 1971, vol. 6,4,446-55

14. SIBONY D. L’Autre encastrable, Seuil, Paris,1978.

Sibony D. O Outro incastrável, Seuil, Paris, 1978.

15. BARTH K., cité par Xavier TILLIETTE in “La légende du Grand Inquisiteur”, Desclée de Brouwer, Paris, 1958.

Barth K., citado por Xavier Tilliette in “ A Lenda do Grande Inquisidor”, Desclée de Brouwer. Paris, 1958.

Este texto tornou-se objeto de uma conferência no 2o. Colóquio do CEP, “Paroxismalidade e crise” em novembro de 1989.

Tradução de Maria Lucia de Carvalho Accacio.

São Paulo,28 de julho de 2000.

c 1996-2000 Leo Berlips, JP Berlips & Jens Berlips, Slavick Shibayev